No Candomblé, as “nações” referem-se a diferentes vertentes ou linhagens da religião, cada uma com suas próprias tradições, rituais, cânticos e divindades. Essas nações refletem a diversidade cultural e étnica dos povos africanos que foram trazidos para o Brasil durante a diáspora.
No início, não havia uma distinção entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos. Homens e divindades coexistiam, compartilhando vidas e aventuras.
Conta-se que, ao tocar o Orum com as mãos sujas, um ser humano profanou o céu imaculado dos orixás, fazendo com que o branco puro de Obatalá se desvanecesse. Em sua indignação, Oxalá foi reclamar a Olorum, o Senhor do Céu e Deus Supremo. Irado com a impureza, o desperdício e a negligência dos mortais, Olorum soprou seu divino fôlego enfurecido e separou permanentemente o Céu da Terra. Assim, o Orum desvinculou-se do mundo dos homens, e nenhum ser humano poderia mais visitar o Orum e retornar com vida. Os orixás também se viram impossibilitados de descer à Terra em seus corpos.
Com essa separação, os orixás, isolados dos humanos habitantes do Aiê, mergulharam na tristeza. Sentiam saudades de suas travessuras entre os mortais e, amuados, foram reclamar a Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudessem retornar à Terra ocasionalmente. No entanto, essa permissão vinha com a condição de que tomassem os corpos de seus devotos.
Oxum, que anteriormente gostava de descer à Terra para brincar com as mulheres, compartilhando sua beleza e ensinando feitiços de sedução, recebeu de Olorum a tarefa de preparar os mortais para receber os orixás em seus corpos. Para cumprir essa delicada missão, Oxum fez oferendas a Exu, pois o sucesso de sua empreitada garantiria a alegria de seus irmãos orixás.
Desceu ao Aiê e reuniu as mulheres ao seu redor, banhando-as com ervas preciosas, raspando suas cabeças e adornando seus corpos. Pintou suas cabeças com pequenos pontos brancos, semelhantes às penas da conquista, e vestiu-as com belíssimos tecidos e laços exuberantes, enfeitando-as com joias e coroas. O ori, a cabeça, foi adornado com a rara e misteriosa pena ecodidé, uma pluma vermelha do papagaio-da-costa. Nas mãos, as mulheres carregavam abebés, espadas e cetros, enquanto os pulsos eram enfeitados com dúzias de indés dourados. O colo foi coberto com voltas de contas coloridas e múltiplas fileiras de búzios, cerâmicas e corais. Na cabeça, colocaram um cone feito de manteiga de ori, finas ervas e obi mascado, repleto de todos os condimentos apreciados pelos orixás.
Assim, as pequenas esposas estavam prontas, estavam odara. As iaôs tornaram-se as noivas mais belas que a vaidade de Oxum poderia imaginar, preparadas para receber os deuses. Os orixás agora tinham seus cavalos e poderiam retornar ao Aiê com segurança, montando os corpos das devotas. Os humanos faziam oferendas aos orixás, convidando-os à Terra e aos corpos das iaôs. Então, os orixás vinham e tomavam seus cavalos.
Enquanto os homens tocavam seus tambores, vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás, e cantavam, dando vivas e aplaudindo, convidando todos os iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam e dançavam incessantemente. Assim, os orixás puderam conviver novamente com os mortais, e sua felicidade era manifesta. Na roda das feitas, nos corpos das iaôs, eles dançavam, celebrando a união. Assim, o candomblé foi criado.
Desde o século XVII se tem notícias de cultos africanos em terras brasileiras. De fato, há cerca de vinte anos, uma imensa massa de informações sobre o que se convencionou chamar “calundu colonial” começou a ser revelada por historiadores e antropólogos brasileiros, que, investigando nos arquivos públicos da santa inquisição, se depararam não apenas com novos dados, mas também com novas interpretações sobre um tema até então mal conhecido. Os animadores desses misteriosos cultos de origem africana começaram então a ocupar a cena historiográfica. Figuras como o congolês Domingos Umbata, flagrado em 1646 pelos visitadores da Inquisição na capitania de Ilhéus; a angolana Branca, ativa na cidade baiana de Rio Real nos primeiríssimos anos do século XVIII; a outra angolana, Luzia Pinta, muito bem-sucedida na freguesia de Sabará, nas Minas Gerais, entre 1720 e 1740; a courana Joseja Maria ou Josefa Courá com sua “dança de Tunda”, estabelecida em 1647 no arraial de Paracatu, Minas Gerais; o daomeano Sebastião, estabelecido em 1785 na cidade de caichoeira, no Recôncavo Baino; e enfim, Joaquim Baptista, ogan (uma espécie d líder de terreiro) do ‘culto ao seu deus Vodun”, no Accu de Brotas, freguesia periférica da cidade da Bahia, em 1829. A esta lista poderia ser acrescentada de Zacharias Wagener, artista que viveu no Pernambuco holandês de 1634 a 1641, representando uma festa de africanos e trazendo preciosas informações visuais sobre a variedade e a disposição dos atores, figurinos e instrumentos musicais. Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou então em casas também destinadas a outras ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas, também não se tratava de simples cultos domésticos, uma vez que tinham um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções e eram frequentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive brancos vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ganhar bem a vida com atendimento individual e se tornar financeiramente independente ao prestar à população serviços essenciais que o Estado colonial não assegurava satisfatoriamente.
A documentação da época permite três tipos de sacerdócio, às vezes reunidos numa mesma pessoa, como Luzia Pinta, que era “culunduzeira, curandeira e adivinhadeira”. Isso significa que, além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas, cataplasma, e unguentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar doenças mais graves como a tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional, participaram inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; também sabiam, curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e complexos. Na cidade de Rio Real, no interior baiano, o Santo Ofício identificou o caso de um senhor empresário que pagou caro por, pelo menos, duas escravas curandeiras afamadas, montando com elas uma espécie de clínica onde se praticavam vários tipod de cura, e dividindo com elastodos os lucros. Desses registros, surgiram notícias de curandeiros e adivinhadores sendo recebidos em monastérios, nos meios ricos, onde eram bem pagos, e até agraciados pelo rei de Portugal por bons serviços prestados. A eficiência questionava o monopólio da cura atribuído à Igreja e mesmo à medicina oficial.
Como o escravismo se configurava como um regime de opressão, sempre se pensou que os calundus tivessem sido duramente perseguidos. Mas, de fato, se isso fosse realidade, seus líderes jamais poderiam ter se estabelecido estavelmente, como, por exemplo, Luzia Pinta, quese manteve atuante vinte anos na cidade mineira de sabará. Na verdade, existia no seio da classe governante um debate constante a respeito da melhor maneira de controlar a massa escrava e liberta. Se a política tirânica parece ter predominado nos períodos de crise, em grande parte do tempo foi a política moderada que predominou.
Assim, desde o século XVII os calundus funcionavam normalmente no Brasil, pelo menos até que seus líderes se tornassem muito visíveis, angariassem clientela branca ou se envolvessem em revoltas. Faziam parte da paisagem social porque eram funcionais, respondiam a várias necessidades de uma população carente e não pretendiam ser seitas secretas. Sua vocação era se tornar, como na África, instituições públicas reconhecidas.
Desse lado do Atlântico, os calundus de diversas origens africanas, como Natu ( das regiôes ao sul da África, como Angola, Congo, Moçambique) e Jeje (da África Ocidental, atual República de Benin), por exemplo, acabaram aderindo ao Catolicismo, já o sincretismo com os cultos ameríndios deu-se apenas com os bantos. Alguns, como o de Luzia Pinta, misturaram tradições africanas, católicas e indíginas no mesmo ritual, dando origem ao que se convencionou chamar Umbanda.
Ao contrário dos anteriores, o calundu Jeje do Pasto de Cachoeira era uma organização tipicamente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de periferia. Já o candomblé do Accu é um dos vários cultos jejes que começaram a funcionar no Recôncavo Baiano em meados do século XIX, situados em freguesias urbanas apenas no nomes-eram, na verdade, chácaras cercadas de mata atlântica.
Esses cultos Jejes eram mais marcadamente cumitários e com fortes tradições litúrgicas, as que foram implantadas na Bahia. Nesse processo, receberam apoio dos calundus bantos existentes, que detinham um saber ritual acumulado, bem adaptado ao meio. O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afro-brasileira, seria precisamente organizar o culto na cidade, exibi-lo como instituição urbana legítima, buscar sua oficialização.